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Somos todos racistas. E a banana do Daniel Alves não muda isso

rodrigomattos

29/04/2014 15h41

A campanha publicitária anti-racista iniciada por Daniel Alves e Neymar tem lá seus méritos por disseminar uma discussão sobre o assunto. Mas será que ela ataca o ponto principal? Será que vai servir para ao menos reduzir a discriminação no futebol?

Para tentar responder, vamos lançar um hipótese: digamos que esse movimento, por uma improvável conjunção de fatores, um milagre, conseguisse reduzir as manifestações racistas nos estádios de futebol. Acabam-se as bananas e as imitações de macaco. Certamente os jogadores ficariam aliviados de não serem mais ofendidos. Mas o racismo no futebol terminaria ali?

Obviamente que não. A estrutura do futebol é racista. E ela é racista porque nós, homens, que a construímos, somos racistas. O torcedor que joga a banana no campo de futebol é só a cara mais feia de todos nós. Sua manifestação é o que há de visível em uma organização esportiva que, como o restante da sociedade, privilegia brancos de origem europeia em detrimento a negros, índios, mestiços, etc.

Olhe por exemplo para o presidente da Fifa, Joseph Blatter. Branco e suíço. Seus antecessores sempre foram brancos das elites de seus países, seja o tupiniquim João Havelange ou o britânico Stanley Rous, que era acusado de ser racista sem que isso tenha sido provado até hoje. Negros só ocuparam posições laterais no poder. Há dois vices-presidentes, e dois outros membros do Comitê Executivo da Fifa, mas nenhum têm peso no centro das decisões.

Observe agora a América do Sul, a Conmebol (Confederação Sul-Americana de Futebol). A foto de seu núcleo de poder só mostra brancos no centro. Há homens de feições indígenas, mas eles são minoria e não são os mais poderosos.

Chegamos ao Brasil, à CBF. Todos os presidentes da confederação até hoje foram brancos, assim como o atual e o futuro. Todas as três entidades fazem campanhas contra o racismo, nenhuma elegeu um negro para comanda-la.

Agora, pegue uma foto do presidente do seu clube. Se olharmos para as imagens dos presidentes dos 12 grandes times nacionais, no máximo, você verá o moreno Roberto Dinamite. O resto é todo branco.

O Flamengo tem a maior torcida negra do país. Nenhum presidente que não fosse branco assumiu o clube mais popular do país, salvo engano. Se eu estiver errado, me avisem porque não achei a foto de todos. Mas, se houver exceção, confirma a regra. A Bahia é o maior Estado negro do país, os presidentes de Bahia e Vitória são brancos.

Vamos aos bancos de reservas. Nos grandes times nacionais, há dois técnicos negros, Cristóvão Borges e Jayme de Almeida. É um milagre porque normalmente não tem nenhum, ou um apenas.

Analisemos a mídia esportiva nacional, os "formadores de opinião". Olhe para o meu rosto e para os dos outros blogueiros do UOL ao meu lado: todos ou quase todos brancos. Ligue a TV aberta ou os canais a cabos: quase todos brancos, apesar da grande quantidade de negros ex-jogadores. O Júnior, ex-Flamengo, é uma das honrosas exceções.

E não há negros no futebol? Ora, o futebol brasileiro foi formado em cima da capacidade técnica de jogadores mulatos, pretos, índios, mestiços em geral. Isso ocorre por 80 anos desde que sua entrada no esporte foi permitida após a queda de uma barreira racista mais visível. E nenhum deles teve capacidade de ascender a cargos importantes após o final de sua carreira? Ou o caminho estava barrado por uma estrutura arcaica e racista?

Qual o quadro então que vê um torcedor destes desprovidos de inteligência, com banana na mão? Um futebol dirigido e dominado por brancos no qual os negros e mestiços podem atuar como bem pagos artistas espetáculos. Na visão distorcida dele, aquele ali é um macaco de exibição com quem ele pode fazer o que quiser, até tacar bananas.

Se formos pensar bem no futebol moderno, com aumento considerável do preço dos ingressos, até as arquibancadas tendem a ser mais brancas no futuro. Veja o caso do Flamengo. Sua política de majoração de bilhetes é justa para sustentar o clube. Mas perceba como os negros estão sumindo das arquibancadas no novo Maracanã.

Se vocês acha que aqui vou defender uma política de cotas para negros no futebol, estão enganados. Não sei qual a solução. Não existem fórmulas mágicas como campanhas publicitárias bem boladas para atacar o problema. Poderia, no máximo, em pensar em formas como um jogador como Neymar poderia ajudar um pouco a mudar esse quadro.

Quem sabe usar seus recursos vultosos para bancar projetos que aumentassem a inserção dos negros em cargos de dirigentes e técnicos. Ou iniciar um movimento para maior participação de jogadores nas esferas de poder do esporte, o que fatalmente incrementaria o número de mestiços. Talvez outra ideia seria ele parar de alisar o cabelo por um tempo. Meu filho, de cinco anos, que adora o cabelo dele, poderia ver um ídolo diferente da imagem que a televisão apresenta em 99% das vezes.

Neymar pode decidir não fazer nada disso. E é justo que possa tocar a vida dele como quiser, e usar o cabelo ao seu gosto. Mas, por favor, não venha vender a ideia de que uma campanha com hastags bem boladas vai ter impacto real no racismo no futebol.

Quando linchamos o racista no estádio, tentamos esconder o que também está em nós, ainda que escondido. Porque fomos nós que construímos essa estrutura discriminatória do futebol mundial, como reflexo do que fazemos na sociedade inteira. E, por mais que nos esforcemos por mudanças, continuaremos a ser racistas por longo tempo, de barrigas cheias de bananas ou não.

( Para seguir o blog no Twitter: @_rodrigomattos_)

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Sobre o Autor

Nascido no Rio de Janeiro, em 1977, Rodrigo Mattos estudou jornalismo na UFRJ e Iniciou a carreira na sucursal carioca de “O Estado de S. Paulo” em 1999, já como repórter de Esporte. De lá, foi em 2001 para o diário Lance!, onde atuou como repórter e editor da coluna De Prima. Mudou-se para São Paulo para trabalhar na Folha de S. Paulo, de 2005 a 2012, ano em que se transferiu para o UOL. Juntamente com equipe da Folha, ganhou o Grande Prêmio Esso de Jornalismo 2012 e o Prêmio Embratel de Reportagem Esportiva 2012. Cobriu quatro Copas do Mundo e duas Olimpíadas.

Sobre o Blog

O objetivo desse blog é buscar informações exclusivas sobre clubes de futebol, Copa do Mundo e Olimpíada. Assim, pretende-se traçar um painel para além da história oficial de como é dirigido o esporte no Brasil e no mundo. Também se procurará trazer a esse espaço um olhar peculiar sobre personagens esportivas nacionais.


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